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  • Foto do escritorvalbcampelo

Uma manchinha tira a mãe da culpa. Ou não.


Pelos anos setenta, em todas as grandes e médias cidades nordestinas, haviam os chamados cabarés, cuja essência se esvaiu com a liberdade sexual plena, própria dos tempos modernos. Funcionavam quase sempre agrupados em áreas moralmente delimitadas - as zonas do baixo meretrício, onde casas de jogo, policiais, cafetões, malandros, prostitutas, homossexuais e clientes davam conta de manter a ordem, a diversão e os negócios.


Diferentemente das casas assemelhadas de hoje, as da época suscitavam um certo romantismo, a música era lenta, valsas e boleros convidavam à dança de rosto colado, a mesa no canto permitia diálogos que vez por outra terminavam em romances verdadeiros e as roupas das garotas apenas sugeriam suas nudezas, enchendo as mentes e esvaziando os bolsos dos clientes encantados com a beleza e o porvir. A penumbra, o cheiro de bebida e cigarro, os garçons, as mesas espalhadas, os lustres, o vai e vem, tudo compunha um ambiente de sonhos, sexo e pecado.

Foi numa delas que Adalberto conheceu Neuza. Ele tinha uns cinquenta anos e era um fazendeiro típico nordestino. Vinha duas vezes por mês à cidade grande comprar insumos e mantimentos do tipo que não se encontrava na vila onde morava, e vender seus produtos, normalmente grãos, ovelhas e gado. Uma vez ou outra passava no banco para tratar com o gerente. Além disso, sem falta, passar uma noite no cabaré. A Boate Coimbra e seus freqüentadores já haviam se acostumado com sua presença, discreta e pacífica. Ele chegava sempre sozinho e bem vestido, escolhia uma mesa afastada, tirava o chapéu, pedia uma bebida, acendia o cigarro e se punha a observar as garotas se movendo pra lá e pra cá. Naquele dia, foi aquela novata com cara de mocinha quem chamou sua atenção.

Ela era baixinha, de pele alva e cabelos pretos, lisos, que lhe vinham até os quadris largos, seios firmes. Tinha por volta de vinte e cinco anos, mas seu rosto delicado bem poderia ser de uma garota de dezoito. Sob a penumbra e ouvindo músicas de Altemar Dutra, aquela silhueta enchia de fantasia as mentes ávidas dos frequentadores. Boleros e rodopios, exibição de beleza e sensualidade, ao mesmo tempo uma dama e uma puta.


Ele a chamou, pediu que sentasse e iniciou a conversa de praxe, acompanhada de uma dose de campari pra ela e um uísque pra ele. Normalmente o papo tinha a ver com a origem, a idade, o que fazia antes, se tinha filhos, como havia chegado ali, o que queria da vida, enfim, um rito que Adalberto conhecia e fazia questão de cumprir, pois segundo ele, não dava pra ir pra cama com quem não se troca palavras e impressões. Talvez, sem querer, estivesse garantindo um pouco de boa-fé na relação que se iniciava, uma espécie de auto-engano em que mergulham todos os apaixonados, ainda que naquele lugar os sentimentos estivessem sempre por um fio.


Acordaram abraçados em um dos quartos nos fundos da boate que na época fazia parte do pacote. Daí em diante viveram o clássico romance cliente-prostituta, cuja regra única era a exclusividade sempre que Adalberto avisasse ou chegasse na boate, o que passou a ser mais freqüente. As obrigações da fazenda, os filhos e a esposa foram apartados de uma vida secreta em que só cabia Neuza. A vida seguiu assim até que, numa daquelas quartas-feiras, depois de um certo “suspense”, Neuza disse que estava grávida. Com essa ele não contava.


─ Tá falando sério? Perguntou Adalberto. De quem é?

─ É seu, claro. Se não fosse eu nem tava lhe contando.

─ Como é que você sabe que o filho é meu?

─ Eu sei e pronto. Só estou dizendo, não se preocupe, não quero nada seu.


Adalberto se levanta e vai embora, não tem condições de prosseguir aquela conversa. Ter um filho aos cinqüenta anos de idade com uma prostituta era tudo que ele não precisava, ainda que no íntimo se regozijasse, pois soava como afirmação de sua virilidade. Ia aguardar pra ver.


Naquele tempo não havia exames de DNA, então o nascimento de filhos na “zona” era sempre envolto em confusões e incertezas quanto à paternidade. A dúvida costumava ser desfeita somente quando a aparência da criança denunciava o pai. “Filho de puta tira a mãe da culpa” era um ditado bastante popular.


Entre os clientes de Neuza, havia um jovem estudante de Direito. Seu nome era André, veio do interior e morava em uma república de universitários. Por certas dificuldades de entrosamento com os colegas e, como na época, sexo quase nunca fazia parte dos namoros, o rapaz, sempre introspectivo, buscara companhia na “Boate Coimbra”. Aquela garota pequena, de cabelos compridos e olhar sincero, se transformou em seu refúgio e, ao mesmo tempo, em professora de uma matéria que não constava da base curricular da faculdade.


Quanto a experimentar sobre sexo teria um jovem de 22 anos, vividos todos em uma pequena cidade do interior nordestino nos anos 60? Quase tudo. De olhares lascivos a gestos e posições, de contemplação a frenesi, de doçura a rudezas insinuadas, tudo se apresentava muito mais interessante do que qualquer daquelas colegas esnobes.


Ao contrário de Adalberto, seu vínculo com Neuza não era sentimental, tinha mais a ver com a diversão no cabaré, com a euforia momentaneamente experimentada, com o sexo tórrido e com a superação de sua timidez. Neuza o fazia ver-se bonito, elegante, atraente, bem diferente do que sentia com as meninas da faculdade, por quem se julgava rejeitado. Sua linguagem, modos e gosto musical não eram exatamente o que fazia a cabeça das colegas que cantavam de cor Beatles e Elton John.


Aquele lugar lhe facilitava as coisas. Ali, André não precisava de capricho nas roupas, de fingir trejeitos na dança, de falar nenhuma gíria... Era a moradia da verdade. E do sexo, que lhe estourava os hormônios e os sonhos. Enquanto seus colegas imploravam beijos e afagos fortuitos em algum clube da cidade, ele se realizava plenamente com Neuza. Assustou-se quando ouviu que ela estava grávida de um filho seu.


─ O quê? Tá louca? Tem certeza que é meu? Como é que você sabe?

─ Claro que é. Se estou dizendo, é porque sei.

─ Tá, mas eu sou só um estudante, você sabe, não tenho nem emprego, meu pai é que me sustenta. Ainda vou me formar daqui há três meses. Como é que vai ser?

─ Só estou lhe dizendo, não preciso de nada seu.

André não sabia o que dizer. Um filho!? Como daria a noticia à família? Aos poucos, se acalmou e foi embora. Levianamente, concluiu que não lhe caberia nenhum ônus, nenhuma responsabilidade. “Aquele não seria o primeiro filho de prostituta a ser abandonado pelo pai”.


O tempo passou rápido. André visitava Neuza cada vez mais raramente, apenas acompanhava a gravidez. Em março ela teve a criança. Um menino saudável que ao conhecer, em um instante, Adalberto soube que era seu filho, pois o garoto trazia nas costas uma marca de nascença igual a de seu filho. Seus olhos marejaram. Como poderia abandonar aquele menino? Não seria uma atitude honrada, não para ele, sempre aprisionado na palavra dada.


─ É meu filho mesmo. Eu não tenho, mas meu filho e meu pai tem essa manchinha nas costas. Não dá pra negar. Pode deixar, vou ajudar a criar, manter, educar e tudo mais. Só não posso tirar você daqui, me separar de minha esposa. Mas você pode deixar o moleque com sua mãe, eu vou lá toda semana, não vai faltar nada, prometo.

─ Está bom pra mim. Eu nunca pensei que você me tirasse dessa vida. Nem quero.

─ Então está certo. Na próxima semana eu volto.

─ Por mim, tudo bem.


Neuza sabia que embora estivesse abalado, Adalberto não mudaria nenhum aspecto da vida por causa dela ou de seu filho. Era experiente, conhecia dezenas de garotas que passaram pela mesma situação. A sina das mulheres da zona é não ter nada dos homens a quem pertenciam. Adalberto estava sendo generoso, era um homem de palavra, podia ser pior.


Uma semana depois, foi André quem apareceu. Fez as contas, queria saber se a criança havia nascido. Neuza o levou até o quarto e aproveitou para dar banho no garoto. André exclamou – É meu filho! Tá vendo essa mancha nas costas? Igual a minha. Não se preocupe, já estou num estágio, vou começar a trabalhar e não vou deixar faltar nada pro meu filho.


─ Pois é. Eu não disse que era seu?

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