Ocorreu-me, depois de algumas leituras e confrontando-me com fatos recentes intensamente divulgados, ao invés de emitir uma opinião, como ouso frequentemente neste espaço, fazer uma rápida entrevista (rogo benevolência, dado que não sou jornalista) com um famoso escritor falecido, sim, falecido em 1950 aos 46 anos de idade. Ele será reconhecido nas primeiras linhas a seguir. Quem não o leu deveria correr pra livraria mais próxima. A entrevista se realiza em 2030 e trata de nosso tempo. Ele responde em 1949. Calma, você entenderá.
Eu: Considerando o ano de 2021, você concordaria que a sociedade global perdeu a privacidade e o direito à livre expressão?
Ele: Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico. Tentar adivinhar o sistema utilizado pela Polícia das Ideias para conectar-se a cada aparelho individual ou a frequência com que o fazia não passava de especulação. Era possível inclusive que ela controlasse todo mundo o tempo todo. Fosse como fosse, uma coisa era certa: tinha meios de conectar-se a seu aparelho sempre que quisesse. Você era obrigado a viver — e vivia, em decorrência do hábito transformado em instinto — acreditando que todo som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse completa, todo movimento examinado meticulosamente.
Eu: Então se tratava de uma superestrutura que, provavelmente, gerava resistência. Havia na época algum adversário real? De que modo ele era conhecido?
Ele: Sim. Emmanuel Goldstein, era o Inimigo do Povo. (...). Diariamente havia a programação de Dois Minutos de Ódio e o principal personagem era sempre Goldstein. (...). Goldstein atacava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia a imediata celebração da paz com a Eurásia, defendia a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento. O mais horrível dos Dois Minutos de Ódio não era o fato de a pessoa ser obrigada a desempenhar um papel, mas de ser impossível manter-se à margem. Depois de trinta segundos, já não era preciso fingir. Um êxtase horrendo de medo e sentimento de vingança, um desejo de matar, de torturar, de afundar rostos com uma marreta, parecia circular pela plateia inteira como uma corrente elétrica, transformando as pessoas, mesmo contra sua vontade, em malucos a berrar, rostos deformados pela fúria. Mesmo assim, a raiva que as pessoas sentiam era uma emoção abstrata, sem direção, que podia ser transferida de um objeto para outro como a chama de um maçarico. (...). Em seu segundo minuto, o Ódio virou desvario. As pessoas pulavam em seus lugares, gritando com toda a força de seus pulmões no esforço de afogar a exasperante voz estertora que saía da tela. (...). Ao fim, todos gritavam, Big Brother! Big Brother!
Eu: Mas o pensar é livre. Devia haver um modo de pensar contra o sistema de repressão da liberdade de pensamento e de expressão, juntar essa massa crítica, criar uma resistência ao Big Brother. Ou não?
Ele: O pensamento-crime não era uma coisa que se pudesse disfarçar para sempre. Você até conseguia se esquivar durante algum tempo, às vezes durante anos, só que mais cedo ou mais tarde, com toda a certeza, eles o agarrariam. (...). O pensamento-crime não acarreta a morte: o pensamento-crime é a morte.
Eu: Historicamente, a juventude sempre se mostra disposta a revoluções, a mover o mundo a favor da liberdade. Como se comportava?
Ele: Quase todas as crianças eram horríveis atualmente. O pior de tudo era que, por meio de organizações como a dos Espiões, elas eram transformadas em selvagens incontroláveis de maneira sistemática — e nem assim mostravam a menor inclinação para rebelar-se contra a disciplina do Partido. Pelo contrário, adoravam o Partido e tudo que se relacionasse a ele. As canções, os desfiles, as bandeiras, as marchas, os exercícios com rifles de brinquedo, as palavras de ordem, o culto ao Grande Irmão —tudo isso, para elas, era uma espécie de jogo sensacional. Toda a sua ferocidade era voltada para fora, dirigida contra os inimigos do Estado, contra os estrangeiros, os traidores, os sabotadores, os criminosos do pensamento. Chegava a ser natural que as pessoas com mais de trinta anos temessem os próprios filhos.
Eu: Em que bases se sustentava essa tirania? Vê-se que não era apenas pela força.
Ele: Os sagrados princípios do Socing (Socialismo Inglês). Novilíngua, duplipensamento, a mutabilidade do passado.
Eu: Como funcionam esses princípios?
Ele: Apenas em sua própria consciência que, de todo modo, em breve seria aniquilada. E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido — se todos os registros contassem a mesma história —, a mentira tornava-se história e virava verdade. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, rezava o lema do Partido. E com tudo isso o passado, mesmo com sua natureza alterável, jamais fora alterado. Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples. O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a própria memória. “Controle da realidade”, era a designação adotada. Em Novilíngua: “duplipensamento”.
Saber e não saber, estar consciente de mostrar-se cem por cento confiável ao contar mentiras construídas laboriosamente, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas; recorrer à lógica para questionar a lógica, repudiar a moralidade dizendo-se um moralista, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo o que fosse preciso esquecer, depois reinstalar o esquecido na memória no momento em que ele se mostrasse necessário, depois esquecer tudo de novo sem o menor problema: e, acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao processo em si. Esta, a última sutileza: induzir conscientemente a inconsciência e depois, mais uma vez, tornar-se inconsciente do ato de hipnose realizado pouco antes. Inclusive entender que o mundo em “duplipensamento” envolvia o uso do duplipensamento. (...). A história não passava de um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário. Uma vez executado o serviço, era absolutamente impossível provar a ocorrência de qualquer tipo de falsificação.
Eu: Mas o passado existe, os fatos do passado determinaram o presente.
Ele: O passado não fora simplesmente alterado; na verdade fora destruído. (...).
Esse processo de alteração contínua valia não apenas para jornais como também para livros, periódicos, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, trilhas sonoras, desenhos animados, fotos — enfim, para todo tipo de literatura ou documentação que pudesse vir a ter algum significado político ou ideológico. (...). A história não passava de um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário. Uma vez executado o serviço, era absolutamente impossível provar a ocorrência de qualquer tipo de falsificação. A maior seção do Departamento de Documentação, muito mais ampla do que aquela em que Winston trabalhava, era composta de pessoas cuja única obrigação era localizar e recolher todos os exemplares de livros, jornais e outros documentos que tivessem sido substituídos e precisavam ser eliminados.
Eu: Isso que você chama de Novilíngua, como funcionava em 2021?
Ele: Estamos dando os últimos retoques na língua — para que ela fique do jeito que há de ser quando ninguém mais falar outra coisa. Depois que acabarmos, pessoas como você serão obrigadas a aprender tudo de novo. Tenho a impressão de que você acha que nossa principal missão é inventar palavras novas. Nada disso! Estamos destruindo palavras — dezenas de palavras, centenas de palavras todos os dias. Estamos reduzindo a língua ao osso. (...). Se você tem uma palavra como “bom”, qual é a necessidade de uma palavra como “ruim”? “Desbom” dá conta perfeitamente do recado. (...). “Lá por 2050 —ou antes, talvez —todo conhecimento real de Velhalíngua terá desaparecido. Toda a literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron existirão somente em suas versões em Novilíngua, em que, além de transformados em algo diferente, estarão transformados em algo contraditório com o que eram antes. A literatura do Partido será outra.
Eu: A quem se dirige as suas reflexões?
Ele: Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós — a um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito: Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento — saudações!
Voltei. Os textos-respostas foram recortados do livro 1984, de George Orwell. Sobre ele, Aldous Huxley, autor de “Admirável Mundo Novo”, lançado em 1932, disse em carta a Orwell: “Dentro da próxima geração, eu acredito que os governadores do mundo irão descobrir que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governança, do que porretes e prisões, e que a cobiça pelo poder pode ser completamente satisfeita ao sugerir que as pessoas amem a sua servidão, ao invés de chicoteá-las e chutá-las à obediência. Em outras palavras, eu sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo”.
Em referência, sugiro ler/reler o livro. Se tiver mais um tempinho, veja AQUI a primeira adaptação do livro para o cinema, em 1956.
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