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Foto do escritorvalbcampelo

Um sonho me visita

Há um sonho que me visita desde a adolescência. Muitas vezes ele me deixa acordar e me conforta, como se fosse um sonho qualquer. Outras vezes ele me prende, me machuca e dispensa sem culpa. Sinto que se esforça para me reter, mas devo acordar, sem nem saber direito pra quê. Por que não deixar correr o tempo e explorar para sempre as possibilidades infinitas daquela espécie de onirismo?

Certa vez ele me levou a uma ponte muito alta, tanto que de cima não se via o rio correndo lá embaixo. Eu via apenas uma névoa, estava angustiado e desejei pular. Tentei ver a água, aonde eu cairia, mas não era possível saber. O rio correndo era só uma dedução, não uma certeza. Poderia estar seco e cheio de pedras. Acordei com essa indecisão.


O sonho costuma me pregar peças. Outra vez ele me pôs a andar num shopping center que eu não conhecia. Eu entrava de loja em loja sem comprar nada, enquanto as pessoas não me notavam. Nenhum vendedor se dirigiu a mim, nenhuma garçonete me ofereceu um folheto com cardápio. Nada. Era como se não me vissem. Tentei chamar a atenção de uma moça bem vestida que jantava sozinha, sentei-me à sua frente e nada. O sonho desistiu de mim e acordei chateado, me perguntando - como assim? como ser invisível a todos?


Conheci o Alaska levado pelo meu sonho. Penso que era o Alaska, mas poderia ser qualquer lugar muito frio. Não sei que memórias recônditas em meu cérebro ajudaram o sonho a me levar tão longe. O frio era insuportável para mim, mas não para as outras pessoas. Todas elas, vestidas em confortáveis casacos, admiravam as esculturas de gelo e tiravam fotos. Eu, não, eu me encolhia num canto. Dessa vez eu mesmo me libertei do sonho.


As pessoas costumam eleger os sonhos que as fazem voar como os mais bonitos e prazerosos. O sonho nunca me levou pra voar como pássaro sobre paisagens e cidades. Esqueci de dizer, mas mais de um sonho me leva quando querem. Nem os reconheço de tantos que surgem, me pegam, me deixam e não voltam. Já estive em lutas, jogos, museus, corridas, grandes cidades... às vezes, vem os maus, eles me levam a precipícios, cemitérios, lugares perigosos, me põem sob a mira de assaltantes. Acordo apavorado, mas não me importo com eles, são só sonhos.


Me importa o sonho que me carrega desde a adolescência. Este que nunca me deixa conversar com ninguém, que não deixa nem que me respondam. Quando estou nele vejo tudo e todos, mas ninguém percebe a minha presença. Parece um sonho cruel, mas não é. Também já me levou a lugares e situações deslumbrantes, vi a aurora boreal, vi as estrelas de perto, vi a terra de longe, ouvi sons novos e cores que nenhum olho conhece. Só não falei com ninguém.


Ele, o sonho, é inconstante, volúvel. Some durante meses, anos. Não dá as caras, como se quisesse provocar saudades. Outras vezes é assíduo, impertinente, não escolhe hora para se apresentar, basta que eu feche os olhos e ele aparece trazendo alguma surpresa.


Na última vez que me procurou, o sonho me levou a uma solenidade, uma espécie de baile precedido de discursos e agradecimentos. Era na cobertura de um edifício muito alto. Sai do elevador, entrei sozinho naquele lugar frio e cheio de gente importante que reconheci, cruzei todo o salão e, sem que ninguém me notasse, fui em direção à mesa que estava posta com petiscos e canapés finos. Nenhum garçom me ofereceu uma bebida ou um suco, nem poderiam, não me viam.


Eu já sabia como funcionava. Poderia ficar ali o tempo que quisesse e ninguém notaria minha presença beliscando os pratos. Foi quando percebi aquela mulher no meio da multidão. Ela estava sozinha, andava elegantemente como se desfilasse, estava nua e vinha em minha direção. Quando chegou perto, assim, de repente, apontou-me e gritou para a multidão, sem que ninguém a ouvisse – Ele está nu!

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