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  • Foto do escritorvalbcampelo

Um romance adolescente. E, Se?

Eles tinham a mesma idade (14 anos), e foram os primeiros namorados um do outro lá pelos anos 80 em uma pequena cidade do nordeste, quando namorar era olharem-se intensamente, sorrir, dançar de rosto colado na tertúlia de sábado, sentarem-se no banco da praça, ou encostarem-se numa esquina. Sem quase não ter o que dizer, se beijavam depois de se assegurarem que ninguém estava vendo, embora por frestas nas janelas as fofoqueiras de plantão enxergassem até mais do que eles faziam, afinal elas precisavam de assuntos mais "quentes" para o dia seguinte.


Ele morava e estudava na idade grande, era um garoto como outro qualquer que nas férias “dava férias” aos pais e acampava de mala e cuia na casa de um tio em Jardins, uma pequena cidade do interior nordestino. Fazia parte do grupo que nascido na cidadezinha havia dado a sorte de estudar fora.

Neste caso, o pai de Vicente se mandara cedo com todos os filhos para a capital, com o sonho máximo de que todos estudassem e adquirissem uma profissão respeitável e menos sacrificada quanto a sua própria. Mesmo assim, deixara ali, além de uma família extensa, um pequeno pedaço de terra e um comércio sazonal da safra agrícola. Seu José era um homem querido e admirado por sua honestidade, afabilidade e dedicação ao trabalho, o que facilitava o acolhimento de seus filhos em toda a cidade.


Assim como muitos outros, Vicente gozava, na época, do privilégio de quem, vindo da cidade grande, representava uma espécie de conquista para as moças de Jardins. As roupas, o corte de cabelo, a música, a dança, as poucas gírias da época, eram trazidas por estes jovens que tinham até vinte e poucos anos e enchiam a cidade em dias de festa durante as férias. Algo muito semelhante ocorria com as moças que também vinham da capital. Os rapazes da cidade enchiam os olhos e estouravam os hormônios. Aquele período no sertão era então uma grande festa, um duradouro fervilhar de emoções geradas entre uns e outros, determinando, algumas vezes, relações que se firmavam para sempre.


Bernadete, a garota por quem o garoto Vicente se interessara e, de algum modo, em todas as festas dava um jeito de se aproximar, era filha de um comerciante local, desses muito ciosos de suas responsabilidades. Suas filhas, todas muito bonitas, eram alvo das paqueras daqueles rapazes da capital, assim como seus filhos buscavam oportunidades entre as garotas que chegavam. Mas. homens, são homens, se dizia na época. A cisma de seu Chico, um homem rude, de poucas palavras, era com as águias sobrevoando seu “quintal”. E com razão. A cidadezinha falava, e muito, a cada noticia de namoro, o que tanto poderia ser bom quando reconhecia partes da mesma laranja, mas ruim, no sentido de por preconceito ou má fama pressupor infortúnios. Por costume, haviam os rapazes de má fama, dados a bebedeiras e confusões.


Bernadete era uma garota bonita, branquinha, magra, olhos e lábios muito pequenos, cabelos curtos, andar firme mas muito tímida, algo desconfiada, como se soubesse mais que as outras, apesar de mais jovem, que tudo poderia acontecer, mas, acontecendo ou não, seria fugaz, provisório, passageiro. Não apostava todas as fichas em Vicente, nem em nenhum outro garoto que se aproximasse. Seu ritmo era lento, perspicaz, seguro. Suas roupas e maquiagens eram discretas. Nas festas, sua dança era quieta, devagar, sutil, sem exibicionismos, contudo, simbólica. Apenas seu arfar ao seu ouvido denunciava o prazer que sentia e sinalizava sua paixão. Para Vicente bastava.


Já ele, era um adulto precoce. Alto para a idade, moreno e forte, bebia pinga misturada com coca-cola, jogava sinuca, ficava até muito tarde na rua (tinha as chaves da casa dos anfitriões que, aliás, nem sempre ficavam trancadas), se arriscava em companhia de primos e amigos bem mais velhos, participava de noitadas e aprendia a ser “malandro”, a explorar a boa fé das meninas, recebia pistas daquelas que seriam mais afoitas em carícias e concessões à libidinagem. Às vezes ficavam deitados, bêbados na calçada da praça, olhando a lua, ouvindo a musica da vitrola do dono do bar.


O tempo corria e as férias repetiam o ambiente de euforia, novos encontros e romances. Outras tantas separações. Muitos desapareciam, eram os que se formavam e tomavam outros rumos, seguiam carreiras e esqueciam de Jardins. A pequena cidade mudava muito lentamente, enquanto a vida dava saltos. Aqueles jovens haviam se tornado médicos, economistas, engenheiros enfim, adquiriram vôos que não faziam escala na pequena cidade. Vicente já tinha 19 anos, entrara na faculdade e, mesmo assim, voltava. Havia em Jardins uma grande família, passeios a cavalo, inúmeros parentes e amigos, festas memoráveis, moda, cabelos, música e gírias atualizadas, e Bernadete.


Daquela vez, porém, algo havia mudado radicalmente. Aquela garota tímida, contida, havia se casado. Cedera aos encantos de outro jovem que lá morava, cansara do romance superficial e semestral, com datas para inicio e fim. Fizera opção pela segurança e abraçara o destino de ali ficar, reproduzindo a história, espelhando os pais, afirmando o eterno. Fez bem, diria qualquer um.


Durante décadas Vicente não voltou a Jardins. Assim como os outros jovens da época, tomou outros rumos. O destino o levou para longe, para muito longe. Ultrapassou fronteiras, falou com outras gentes, outros idiomas. A pequena cidade desapareceu de seu radar. Vicente também casou-se, teve filhos, estabeleceu-se como um homem comum, cumpriu o rito que a vida lhe preparou e voltou. A idade e todas as mazelas que se juntam nos ombros e na mente de quem desafia a vida, fizeram dele um sujeito algo sombrio e ranzinza. Certo dia, por acaso, voltou a Jardins.


A cidade pouco mudara. A mesma rua principal apenas mais longa, algumas travessas laterais, uma praça horrorosa havia substituído aquela antiga, pouco movimento, algum calçamento em vez de terra batida, carros e motos ao invés de cavalos e jumentos, a mesma Igreja. O mundo ali andara devagar.


Ele voltou e encontrou Bernadete. De longe. Não se falaram, nem sequer um boa noite. Apenas um sorriso no canto dos lábios, como se dissessem - sou eu. Ela havia se separado do marido há muito tempo, vivia sozinha e dedica-se aos filhos. Não alimenta sonhos, não ambiciona por si, prendeu as próprias asas em Jardins, não aprendeu a voar. De algum modo, é feliz, vivendo, conscientemente, a plenitude do que veio a ser. É de outra textura, de outra cepa, concluiu Vicente antes de ir embora da curta passagem em Jardins.


Certo dia, o telefone de Vicente tocou mais uma vez e ele pensou se atenderia. Era um número não identificado, mas como já se repetia a mesma chamada por três vezes, ele achou melhor atender. Era Bernadete. Vicente jamais esperaria um diálogo com ela, ainda menos por telefone, sem que antes houvessem trocado palavras. Também não foi desta vez que conversaram. Depois de um alô!, ele ouviu apenas uma frase concisa daquela senhora ainda tímida. “É Bernadete. A vida lhe foi generosa, você quase nada mudou”, disse ela e desligou.


O que seria aquilo? Ambos já estavam com sessenta anos, ele em um casamento feliz, estável e tranqüilo. O que poderia representar tal frase, dita inesperadamente, sem aviso, sem motivo aparente? Não parecia um convite, um sinal de aproximação amorosa ou algo que o valha. Nem seria razoável. Era, pensou Vicente, mais que uma gentileza ou um aceno tardio, uma espécie de confissão, de demonstração de uma lembrança que não se findava.


Embora tivesse se casado apaixonada e ainda jovem com um ótimo rapaz, Bernadete tinha naquele seu primeiro namorado, uma espécie de relíquia guardada numa íntima memória. A sua adolescência fora marcada como tatuagem por sonhos que nunca se realizaram, por enlevos que a fizeram dormir, por erotismos inconfessáveis, por fantasias guardadas a sete chaves nas quais ele era sempre o protagonista. Ver Vicente inesperadamente, ainda que de longe, fizeram-na percorrer lembranças e especulações. Mesmo velho, seu coração se afligia. E, se?

Se a vida tivesse sido diferente, se ela não tivesse se casado, se ele não tivesse ido embora, se eles tivessem se encontrado mais vezes, se os primeiros beijos dados às pressas tivessem dado lugar ao sexo tantas vezes imaginado, se os encontros furtivos se tivessem transformado em compromisso sólido, se suas estradas tivessem se juntado... Bernadete viu passar este filme imaginário em segundos antes de ligar para, em uma frase, dizer a Vicente de modo elogioso (ele pouco mudara) que guardava uma imensa saudade de seu primeiro amor.


Vicente compreendeu isso no telefonema, não teve tempo de dizer nada, não conseguiu exprimir palavra alguma. Melhor assim. A vida segue e ele também. Às vezes se surpreende com uma pergunta. E, se?

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