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Foto do escritorvalbcampelo

Um certo "gênio ruim".

Tito apresentava desde cedo o que hoje em dia seria chamado de hiperatividade, transtorno que acomete milhões de crianças. Mas, naquele tempo, quando um garoto era desobediente, não respeitava as regras impostas pela família, fugia de casa e da sala de aula, brigava com colegas por qualquer coisa, era violento e perverso com animais etc., dele se dizia ter o “gênio ruim”. Na melhor das hipóteses, chamavam-no de impulsivo.


Na falta de atendimento psicológico, criança assim era tratada aos modos da época, ou seja, na peia. Os pais dos anos 60 não economizavam em chibatadas e castigos duros quando se tratava de corrigir meninos de “gênio ruim”. E Tito era um garoto de “gênio muito ruim”, ao ponto de não se saber se apanhava por suas estripulias ou se era o contrário. Apesar de demonstrar uma inteligência notável, crescia sob prognósticos sombrios. “Esse aí vai ser um marginal”, ouvia frequentemente de parentes e vizinhos. Ele não se importava.


Numa manhã rotineira, no caminho que fazia diariamente pra escola, chutando pedras e correndo, ao passar por uma pequena viela muito pobre que havia, com casas de taipa cercadas por uma espécie vegetal conhecida como avelós, bastante comum nas periferias das cidades nordestinas, Tito notou uma aglomeração incomum. Deixou a escola pra depois e foi espiar o que estava acontecendo.


A imagem que viu ficou definitivamente marcada naquela mente de nove anos de idade. No quintal da casa havia um homem enforcado, pendurado por uma corda num galho de um pé de algaroba. Era cedinho e a vizinhança estava toda ali, crianças e adultos observavam estupefatos aquela cena macabra. Era um homem adulto, negro, magro, de cabelos curtos e um bigodinho, vestia uma camisa branca de mangas compridas, uma calça caqui e usava calçados pretos. Parecia ter vestido a sua melhor roupa para aquele encontro com a morte.


Surpreendentemente, não havia o alvoroço que se poderia esperar em uma cena tão forte. As pessoas pareciam resistir a derramar lágrimas pelo suicida. Curioso, Tito ainda acompanhou a retirada do corpo e depois foi embora. No caminho, o menino de “gênio ruim”, que não se dava facilmente a emoções, chorou pelo desconhecido.

Preferiu não contar nada aos colegas na escola nem em casa quando chegou. Guardou aquilo sem saber porquê. Talvez não entendesse, talvez não quisesse entender, talvez tenha deixado pra depois como se o ato extremo merecesse um selo de arquivado.


A vida continuou normalmente. Escola, brincadeiras, correria, brigas, desaforos, desobediência, intrigas e castigos cada vez mais frequentes e mais duros. Aos onze anos, o menino de “gênio ruim”, suportava surras que hoje fariam qualquer adulto responder por maus tratos. Até que um dia, depois de ser injustamente castigado por algo que não fizera, ele lembrou-se do homem enforcado e tomou uma decisão.


Pouco depois do almoço, na hora de fazer o dever de casa, Tito pegou caneta e papel e escreveu em letras grandes uma rápida despedida. Colocou o papel no bolso da bermuda, foi pro pequeno quarto que dividia com o irmão mais novo, atou uma na outra as cordas que estendiam os punhos das redes em que dormiam, amarrou uma ponta no “torno”, fez um laço na outra ponta, pôs em volta do pescoço, subiu num tamborete que havia por ali e pulou. Não funcionou. A corda havia ficado muito longa e ele caiu no chão, com o laço no pescoço e o tamborete virado.


Durante a queda, o tamborete fez um barulho que chamou a atenção de sua mãe que costurava alguma roupa em sua velha máquina Singer. Ao passar pela porta do quarto, ela viu aquela cena e correu para acudir o filho. Tirou-lhe o laço, abraçou-o e chorou copiosamente. Beijou-o como nunca antes, acariciou-o como nunca antes e não disse uma palavra. Nem ele.


Dona Isa era, nos anos sessenta, uma típica mulher pobre do interior nordestino, de extrema dedicação ao marido e aos filhos. Ela encarava diariamente uma jornada de pelo menos catorze horas de trabalho, fazia a comida, lavava a louça, fazia a faxina, cortava os tecidos, costurava e remendava a roupa dos sete filhos. Duas vezes por semana dedicava-se a passar em ferro à brasa a trouxa de roupas que vinha da lavanderia comunitária. Encontrava tempo ainda para tomar dos filhos a lição de casa e, à noite, após o jantar, lhes ensinava orações católicas. Fora isso, a novela no rádio, conversas à noite com algumas vizinhas e a missa aos domingos.


Não havia como lidar com aquele menino de “gênio ruim”, a não ser com os modos e a dureza que havia aprendido em sua própria infância. Dona Isa não imaginava que poderia gerar desamor. Aos quarenta e cinco anos, era apenas uma mulher com obrigações, sem tempo nem formação para elaborar respostas ou comportamentos sutis. Os tempos eram difíceis, o marido, caminhoneiro, não parava em casa e apenas cumpria bem seu papel de provedor.


Nos dias que se seguiram, Tito se manteve quieto, iniciou uma lenta mudança, compreendeu a partir dali que era amado, que poderia se conter e seguir regras. Sua mãe não o castigou mais, nem contou pra ninguém o que acontecera, pelo menos, o assunto jamais foi discutido em sua presença.


Na semana seguinte, quando foi passar a roupa que viera da lavanderia, ao pegar a bermuda que Tito usara naquele dia, Dona Isa notou o papel dobrado no bolso. Abriu, desamassou e leu. “Eu sei que sou ruim, mas vocês também são. Vou embora”.

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