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Foto do escritorvalbcampelo

Rafael quer trabalhar

Em 2019 ele é um jovem de trinta anos, alto e forte, calado, introspectivo, trabalha como montador de móveis em uma loja da cidade. Rafael chegou de uma vila no interior ainda criança e nunca saiu daquela cidade. Foi morar com uns tios sem filhos que estavam já velhos. Eles morreram há alguns anos, lhes deixando a casa onde vive. A capital é seu mundo e seu trabalho só perde em importância para Deus e sua família. Sua esposa Rute e seus filhos Miguel e Alana são seu alento, seu motivo.

Rute, ele conheceu na igreja. É uma moça da sua idade, simpática e dedicada que trabalha como diarista. Em um dia normal de trabalho ganha cerca de R$100,00. Em seus cálculos, é melhor do que ter uma carteira assinada como balconista e ganhar R$1.000,00 por mês. Miguel e Alana tem cinco e três anos respectivamente, são saudáveis e inteligentes. O mais velho já diz que quer ser jogador de futebol. Qual criança não quer?


Eles moram em um bairro periférico, rua de barro, sem esgoto, de iluminação escassa. A casa, depois da melhoria que conseguiram fazer é, contudo, bastante habitável. É de alvenaria, o que já faz diferença naquele bairro onde predominam as casas de madeira, foi murada, tem o quarto do casal com banheiro, o quarto das crianças, banheiro, sala espaçosa, cozinha ampla, piso cerâmico, todos os eletrodomésticos essenciais, enfim, a “dona de casa” dos outros, demonstra todo seu cuidado com a sua própria. Uma jovem família que trabalha honestamente e faz planos.


Evangélicos, fazem da Igreja o refúgio de suas angústias e o palco de suas alegrias. Ali perto, semanalmente eles tem um encontro marcado com a sua fé. Levam seus filhos, lhes transmitem a palavra de Deus, os valores cristãos, comprometem-se como família honrada, conversam com o pastor, dividem planos e decisões e retornam confortados para a semana que se inicia.


Fecha o pano. O ano é 2021 e há quase um ano Rafael está desempregado. Sem que ele entendesse por quê, de uma hora pra outra o mundo mudou. Mandaram que ele ficasse em casa, fecharam as escolas, a loja em que trabalhava demitiu os funcionários, todo mundo foi obrigado a usar um pedaço de pano na cara escondendo a boa e o nariz, e a TV informa que morreram 200, 300, 600, 1000... o obituário não cessa. Seu vizinho com quem assistia futebol foi internado e de lá não voltou. Ficou sabendo que até sua prima no interior foi contaminada, escapou porque é jovem e resistiu.


Em poucas semanas a despensa e a geladeira mostraram a escassez. A ajuda do governo foi providencial, mas insuficiente. Tem a conta de energia, a prestação da TV do quarto, o gás... vai ser preciso gastar aquela poupança que vinha fazendo para comprar um carro. Um amigo da firma ia se desfazer de um palio pra comprar um carro melhor e, como era bem zelado, parecia ideal. Mais uns meses e poderia dar a entrada no tão sonhado carro pra família. O resto, pagaria aos poucos. Infelizmente, não deu tempo, tem que comprar a comida de todo santo dia.


O tempo vai esvaindo a poupança e Rafael, sempre introspectivo, resiste, ampara a esposa que viu sumirem os chamados das “patroas”. Eventualmente, uma ou duas ainda ligam para uma faxina, uma verdadeira benção. A renda caiu muito, não pode participar como antes das despesas de casa, o corpo já acusa, está mais magra, nunca mais foi no salão da Socorro, a cabeleireira do bairro, as unhas estão horrorosas e as crianças reclamam, choram, se desesperam com a falta dos colegas e das brincadeiras no colégio. Rafael observa tudo e faz suas orações em casa porque a igreja continua fechada. Deus haverá de por fim a tudo isso e a vida voltará ao normal.


O réveillon passou e Rafael quase não notou. Teve carnaval? Só sabe pela TV que agora são 200 mil mortos, que seu antigo gerente está internado, que o Flamengo foi campeão de novo, que tem uma nova onda, uma nova cepa e a culpa é do Bolsonaro. “Como assim? Ele manda nos outros países também? Manda em São Paulo? Deixa quieto, esse negócio de política é difícil de entender”. Importante para ele é que aquele bico que arranjou na obra está terminando e ele precisa de outro. Mas as obras estão quase todas paradas por causa das chuvas, como vai fazer a feira quando o sacolão que ganhou se acabar?


Conversou com a Rute - E se eu colocar um espetinho aqui na frente de casa? Pego a churrasqueira que tem lá atrás e vou ali pra parada de ônibus. Lá passa muita gente.


─ Não é perigoso? Tem aquela turma do outro lado, eles não querem saber quem tá na frente, vem, assalta, bate, e se reagir eles matam, disse Rute apreensiva.


─ Perigo tem, mas preciso fazer alguma coisa. Não tem nada na despensa. Você ainda tem aquelas toucas que usa nas faxinas?


─ Tenho umas três ainda. Como é que eu ajudo?


─ Eu corto e você tempera as carnes. Faz tudo certinho, bem gostoso. Cuidado com o sal.


─ E a carne? Como vai ser?


─ Vou no açougue. Umas coxinhas de frango, umas toscanas e um pedaço de alcatra.

Só um pouco pra experimentar. Se não conseguir vender, pelo menos não perdemos muita coisa.


Assim fizeram, e Rafael, o montador de móveis que virou servente de pedreiro, agora se aventurava como ambulante de espetinho. Uns vinte espetos de carne, lingüiça e frango, uma churrasqueira velha, um saco de carvão, algumas águas num isopor e fé no coração. Vai dar certo! E deu.


No primeiro dia foi mais difícil porque havia lá na parada de ônibus um homem com um carrinho de balas, pequenas utilidades e guloseimas que se julgou invadido em seu espaço, mas pobre logo sente a dor do outro. Ficaram amigos, de certo modo se protegiam e tinham com quem conversar. Vendeu uns quinze espetinhos até as 22:00 e foi embora.


Rafael fez as contas e viu que ganhava por volta de 40% do faturamento. Se entre as 17:00 e as 22:00 vendesse pelo menos uns 30 espetos a 8,00 cada, daria pra livrar mais de R$100,00 toda noite. Então resolveu melhorar ainda mais o seu produto. Introduziu coração de frango, levou uma mesa com pratinhos e uma tigela com vinagrete, outra com farofa, outro isopor com refrigerantes e já podia cobrar 10 reais por cada espeto.


Com toda dificuldade da pandemia, como os ônibus estavam liberados, o negócio funcionou. A clientela aumentava porque os próprios moradores daquela rua viram ali um modo de incrementar o jantar, outros, de pegar um tira-gosto, embora ele não vendesse bebida alcoólica. Continuava apertado, mas Rafael assegurava o abastecimento alimentar da própria família. Usava a máscara conforme a prescrição vista na TV, o álcool gel, lenços, distanciamento, não havia mesas nem cadeiras. As pessoas chegavam, pediam, aguardavam o tempo necessário e iam embora.

Numa sexta-feira, menos de um mês depois que Rafael se transformou em um esperançoso vendedor de espetinho, aconteceu o inesperado. Ele chega em casa com a camisa rasgada, sem a touca, machucado, queimado e chorando desesperado.


─ Foram os faccionados né? - Gritou Rute, correndo pra ajudar. Eu sabia! Esses vagabundos do lado de lá não iam deixar, eles têm uma boca de fumo ali na frente, perto da praça. Tanto que eu orei!


─ Não foram eles.


─ Quem foi, então? Não estou entendendo. Foi briga?


─ Não. Foi a polícia. Levaram tudo. Tem lockdown e eu não posso trabalhar.

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