Era um fim de tarde de uma sexta-feira dezembrina, quente como sempre, prometendo pouco movimento nas ruas e restaurantes. O filme em cartaz havia me atraído ao shopping, onde cheguei com tempo suficiente para um chopp com batatas fritas. Sozinho, olho ao redor sem muita esperança de encontrar algum conhecido, desisto, ligo o smartfone e vejo as últimas notícias.
Sem que eu percebesse sua chegada, ele sentou alguns metros à minha esquerda, do outro lado da jardineira que divide a praça de alimentação, também sozinho, ocupando uma das muitas mesas vagas. O reconheci de pronto. Sua fisionomia era peculiar. Os cabelos brancos e a pele enrugada acusavam a idade avançada, mas, incrivelmente, tinha o mesmo olhar arguto da juventude, esperto, inquieto, que lembra um rato farejando uma migalha de pão em algum canto de parede.
Eu achava que aquele sujeito, vestido em camisa branca de mangas longas e gravata azul que sempre usava como “cartão de apresentação”, já estaria pagando seus inúmeros crimes no inferno. Mas ali estava ele, aparentemente saudável. Não demonstrava alegria ou tristeza, o que, aliás, seria surpreendente. Ele sempre foi um boçal distante das pessoas, sem nenhuma empatia ou sensibilidade, sem nenhuma demonstração de gentileza, de civilidade.
Como advogado, era medíocre. Não se conhece um texto sequer de sua lavra, uma tese inovadora, um artigo publicado, nada. Sua expertise era a trama de bastidores, as saletas dos Fóruns, a camarilha dos tribunais, a corrupção rasa dos contratos governamentais, a intimidação e uma ambição desmedida. No limite, o assassinato não deixava de ser uma opção.
Costumava dizer entre amigos que o mundo não pertence a gente honesta, que o Ter, por qualquer modo, impõe mais respeito que o Ser ou o Saber mais sincero. Segundo ele, as feras da vida precisam ser enfrentadas por feras mais ardilosas e traiçoeiras, no final, a ética sucumbe aos vencedores.
Estava eu remoendo esses pensamentos comigo mesmo, quando vejo sentar-se à mesa do Joaquim, este é seu nome, um sujeito de meia idade que eu não conhecia. Era alto e magro, bem vestido e cara de poucos amigos. De imediato iniciaram um diálogo que virou uma discussão rude. Ouvi-a parcialmente conforme se exaltavam. De um trecho, lembro bem.
─ Tô fazendo o que posso pra resolver isso - disse Joaquim
─ Quero só a minha parte no combinado, não me faça de otário. Já estamos velhos pra isso, né?
─ Tá, mas eu preciso de tempo. Não é pouca coisa.
─ De novo? Tem mais tempo não, porra. Se vira!
─ Joaquim se mexeu nervosamente na cadeira e retrucou de modo áspero - veja o tom que você fala comigo, você pode se arrepender.
─ É ameaça? Pois vou pegar essa merda aqui e entregar ao Juiz.
Neste momento, o desconhecido lhe mostrou uma pasta transparente que parecia conter documentos, apontou-lhe o dedo, levantou-se e saiu de modo grosseiro, empurrando a cadeira que quase caiu. Do meu canto, um pouco encoberto pelas plantas, incógnito com a ajuda de óculos e boné que sempre uso às tardes, assisti a cena intrigado. Olhei o relógio do celular, vi que o filme estava para começar, chamei o garçom e pedi a conta.
Joaquim tinha uma doença que espelhava sua alma, maligna, traiçoeira e mortal. Apesar da idade, talvez por seu espírito prepotente, descuidava-se do tratamento médico, como se nada pudesse vencê-lo ou, quem sabe, julgava que poderia ludibriar a própria mazela tal como fazia com as pessoas ao seu redor.
Inesperadamente, bem ali, há alguns metros, logo após aquela discussão, Joaquim desabou na cadeira com um grito de dor, chamando a atenção dos garçons e dos poucos frequentadores. Seria o fim de um ser mesquinho que jamais fora sequer ameaçado pela justiça, que pela corrupção, ameaças e compadrios, havia driblado todas as tentativas de conter sua ganância e perversidade.
Levantei-me e percebi que ele tentava falar, balbuciava algo. Dei a volta, aproximei-me e, num impulso, enquanto os garçons chamavam socorro médico, abaixei-me e ouvi um surpreendente “Meu Deus, me perdoe!”. Me afastei e procurei uma mesa distante. Não lembro quanto tempo depois, chegaram os paramédicos e o levaram sinalizando que teria ocorrido um infarto fulminante.
Fiquei a pensar em suas últimas palavras. Me custava crer que havia um Deus para aquele traste, um que o ouvia em orações e lhe permitia operar sua miséria moral, um Deus que o perdoaria naquele arrependimento de minuto derradeiro. Jamais saberei. Deus é aceitável, crível, mas não explicável, não podemos contê-lo em nossa lógica simples.
Se o fato do criminoso sair da vida em contrição repentina é capaz de redimi-lo, é lá com Ele. Se sim, o sofrimento que causou a suas vítimas e as injustiças que patrocinou impunemente foram perdoados por uma curtíssima prece última. Se não, Joaquim, o arrependido de última hora, foi levado por Caronte, atravessou a selva escura cheia de feras e alcançou o último círculo do Inferno, cumprindo seu itinerário mais merecido.
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