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  • Foto do escritorvalbcampelo

O “Nego Bau”, o Felipe da Silva... fomos nós.


Nesta quarta-feira, mais um morador de rua, Felipe da Silva, foi cruelmente assassinado em Rio Branco, lembrando fatos ocorridos há alguns dias, especialmente os que levaram ao mesmo destino uma figura muito conhecida na cidade - o “Nego Bau”, cujo nome era Renan Santos.


Vi o “Nego Bau”apenas uma vez, perto de uma distribuidora de bebidas no bairro Aviário. Ele se aproximou, pediu-me um dinheiro e, quando peguei a carteira para tirar algum, o amigo que me acompanhava avisou-me que ele o usaria para comprar drogas. E daí? A rigor, o que estaria eu fazendo naquela distribuidora de bebidas? Lembro-me levemente do seu sorriso algo infantil.


Não trato neste espaço da morte do Renan ou do Felipe em si, de suas causas, de suas doenças e traumas, da tortura a que Renan foi submetido, das imagens devastadoras que circulam em vídeos ou da perversidade dos seus algozes. Como cidadão adulto, membro de uma sociedade cuja existência se dá sob um pacto regido por leis humanas, que para ir adiante presume, portanto, humanidade, declaro-me de algum modo co-responsável pelas mortes e pelas quase-mortes, ou quase-vidas, de tantos outros Renans e Felipes que vemos diariamente nos cruzamentos e calçadas da cidade.


Cada uma dessas pessoas, viventes das ruas, esmoleres dos dias e mortiços das noites, é nossa criação social e, portanto, é de nossa responsabilidade. Embora tratemo-las com desprezo e vergonha, nos comportando como pecadores que tentam esconder seus pecados, é dentre nós que elas surgem e se reproduzem. Elas nos pertencem. Independentemente da causa específica, seu martírio é produto de nossa sociedade combalida.


Apenas na capital, segundo o ativista Janes Peteca, existem aproximadamente três ou quatro centenas de moradores de rua (não há um censo específico), quantidade que aumenta dia a dia por múltiplas causas, entre elas os desarranjos familiares, doenças crônicas, desemprego e o consumo de drogas. Levantamento recente indica o aumento de 31% no número de moradores de rua na cidade de São Paulo apenas no período da COVID. Os deserdados da terra se multiplicam, enquanto as classes ditas superiores se locupletam e competem em luxo, exibicionismo e desvario consumista.


É um fenômeno global, direis. Acontece na Europa, nos EUA, em todo lugar. Eu sei. Saber, porém, não diminui o sentimento de culpa e frustração, pelo contrário, reforça a insuportável idéia de ruína do homem moral e do progresso contínuo de nossas sordidezes, enquanto escasseiam a genuína fraternidade e o verdadeiro apego espiritual.

Dirijo o olhar para o Sistema e vejo indiferença. No radar do poder não há sinal que identifique corretamente essa pobre gente. São invisíveis. Que expiem seus pecados, purguem suas almas, desfiem suas loucuras e oxidem-se com seus cachimbos de crack. Os altos escalões não tem tempo a perder com eles.


Como acontece agora, os casos de violência mais escabrosos ou, por algum motivo, simbólicos, ganham alguns dias na mídia para serem logo esquecidos ou superados por outras mazelas. Momentaneamente, comovem alguns corações, mas não ao ponto de fazer mitigar por políticas públicas eficientes e continuadas o quadro estabelecido. Não há dinheiro suficiente. Não?


Se considerarmos, por exemplo, os privilégios que o Estado guarda para determinadas frações no topo do poder, auxílios e penduricalhos que multiplicam sem razão objetiva os rendimentos de suas excelências, parece evidente que há sim. São recursos contados em bilhões de reais. Nós é que ao realizarmos tais prioridades na alocação de recursos escassos em uma sociedade dita democrática, fracassamos solenemente.


Enfim, o que estamos fazendo, eu, você, suas excelências e as instituições, é gerar e matar “sem culpa” os Renans e os Felipes da rua. Em que momento isto foi normalizado não sei, se há uma solução viável para a questão, também não sei. Sei apenas que não é razoável que este vilipendio à condição humana siga intocado. É hora de parar e pensar no “Nego Bau”.

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