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  • Foto do escritorvalbcampelo

Fervendo de paixão

Embora morasse distante da praia menos de 50 quilômetros, Maurício chegou à adolescência sem conhecer o mar. Aquilo era traumático pro rapaz de 15 anos, que na escola nunca tinha o que contar sobre um passeio na praia, ainda mais que toda segunda-feira algum colega ou grupo falava alegremente do final de semana em Tibau, que naqueles tempos era pouco mais que uma aldeia de pescadores. Apenas os abastados da cidade se davam o luxo de ter por lá uma residência para fins de semana.


Eram comuns as excursões dos colégios e bairros que vez por outra levavam grupos de crianças e adolescentes para um dia na praia. Mesmo assim, Mauricio nunca estava no meio da garotada. O motivo era simples - a autoridade dos pais, que nem de longe permitiam que ele fosse sem a sua companhia e, como eles nunca iam, Maurício e os irmãos amarguravam o infortúnio e a gozação dos colegas.

Maurício era um garoto forte, dado à prática de esportes, mas de poucos amigos por sua postura excessivamente séria, como normalmente são os primogênitos. Pelo menos naquela época era assim. Os filhos mais velhos adquiriam cedo uma espécie de responsabilidade do bom exemplo aos mais novos, que sempre eram quatro ou cinco, não igual hoje quando as famílias são diminutas. Maurício assumiu com gosto a função. Fazer o certo e dar ordens aos mais novos era com ele mesmo, então nunca passou por sua cabeça driblar a confiança dos pais e se aventurar, como outros faziam, em uma viagem clandestina a Tibau. Isso até conhecer Gracinha. Ahhh Gracinha! Por que aparecestes à frente de Maurício naquele bendito março?

Era início das aulas e, como sempre acontece, alunos novos aparecem enquanto outros somem. As turmas se reconstituem anualmente em função dessas mudanças, dando oportunidade a novas amizades. Gracinha, a novata, havia se mudado do interior e viera justamente para a classe do Maurício. Era uma mocinha da mesma idade que ele, sorridente e de cabelos longos, tinha olhos verdes encantadores e uma voz que quando falou “me empresta a borracha?” quase derrubou Mauricio da cadeira. Certeiramente, cupido havia flechado seu coração.


Os dias passavam e Maurício, tão tímido quanto responsável, não arranjava coragem para “falar com Gracinha”, o que corresponde hoje a “chegar em Gracinha”. Com a diferença de que nos anos sessenta, “falar” com a moça exigia semanas, senão meses de paquera, de “arrodeio”. Qualquer precipitação seria fadada ao fracasso e um adolescente fracassado na tentativa de namoro sofria o diabo. Tinha que ser na hora certa.


A hora chegou quando o professor de educação física anunciou que no próximo domingo todos iriam à praia. O colégio alugara um ônibus e a turma toda iria naquela aventura de um dia. “É agora”, pensou Maurício. Teria que convencer os pais a permitirem a viagem e, ao mesmo tempo, se assegurar de que não carregaria o encosto do irmão mais novo. Maurício sabia que Heitor, dois anos mais jovem e aluno do mesmo colégio, diria “eu quero ir!”, afinal, também para ele seria a chance de conhecer o mar. Só que não estava nos planos levar a tiracolo aquele pestinha.


Para estar livre de responsabilidades e se dedicar à conquista de Gracinha, Maurício ampliou por sua conta as restrições. Depois algumas noites mal dormidas, chegou a um argumento bastante razoável: O ônibus estava lotado, a direção só permitia alunos daquela turma, tinha que pagar uma certa quantia para as despesas e ainda levar algum dinheiro para almoço e lanche. Ao analisar a última parte, referente às despesas, a decisão foi imediata e caiu como uma pancada “não vai ninguém!”.


Maurício foi pro quarto demonstrando resignação, mas decidido a ir com a turma, Gracinha também iria. Levantou cedo, disse que ia na casa de um colega e lá se foi ele, numa manhã de domingo, em sua primeira viagem à praia. Camisa regata, sunga já vestida, bermuda por cima e só. O resto era alegria e ansiedade. Deus existe!. De uma vez só, a praia e Gracinha. A bronca em casa resolveria depois.


Na viagem, Maurício e Gracinha sentaram juntos na mesma fila no fundo do ônibus, ele, eufórico, decidiu “é agora”. Ela, como num roteiro muitas vezes ensaiado, ajeitava o cabelo e sorria, antecipando um sim. Ele lhe pegou a mão delicadamente e confessou sua paixão. Espertamente, ele queria chegar na praia com aquele namoro resolvido, teriam o dia inteiro para namorar na praia. Sim! Ela disse sim, também tinha os mesmos sentimentos, estava esperando aquele momento e coisa e tal... Namoro selado com um beijo apaixonado, mãos dadas, sorrisos, mais beijos e Tibau à vista.


A chegada na praia é quase sempre um assombro de beleza. Chega-se pelo alto e o mar descortina-se ao longe em cores maravilhosas. Pequenos barcos mar adentro, arrecifes aonde a água bate e sobe em ondas, coqueiros, areia de muitas cores, uma beleza sem fim que para Maurício teria sido suficiente. Descer do ônibus de mãos dadas com Gracinha e contemplar aquela beleza já foi exagero, um prêmio divino.

O professor e mais dois auxiliares organizaram a turma sob uma barraca, deram as instruções de praxe, alertaram sobre a proibição de bebidas alcoólicas, insistiram nas orientações em relação aos perigos do mar, estabeleceram local e horário do almoço e da saída, distribuíram bolas de futebol e de vôlei e liberaram a turma.


Apesar do encantamento inicial do namoro, a turma chamava pro bate-bola na areia e Maurício era do time principal do colégio, não podia ficar fora da brincadeira. “Volto já”, disse ele à Gracinha que se dirigiu sorridente ao grupo de meninas.

Em Tibau, com a maré baixa, a área de praia se estende por centenas de metros de um chão molhado e liso, onde se pode jogar bola por horas antes da maré encher à tarde, então, Maurício passou o tempo inteiro entre jogar futebol, admirar o mar e beijar Gracinha. Um dia inesquecível, mas não por isso.


Como havia saído às escondidas e às pressas, Maurício nem sequer lembrou de levar um creme ou protetor solar, toalha, nada. O resultado não demorou. Ele se deu conta de que havia passado praticamente o dia todo sob o sol, logo na volta pra casa, quando a poltrona do ônibus o incomodou e ele começou a sentir um calor desproporcional no corpo. Não falou nada, aproveitou o cansaço e apenas se recostou de mãos dadas com Gracinha. Intimamente, rezava pra chegar logo em casa e tomar um banho frio. A viagem demorava e ele agonizava, até que atravessou a cidadezinha como se fosse São Paulo, e parou numa esquina da sua rua. Ele beijou rapidamente a namorada e correu pra casa.


Ele havia feito a pequena viagem sem consentimento, então o ambiente não estava amistoso. Sua mãe o aguardava entre apreensiva e furiosa. Ele não quis saber, passou voando direto pro banheiro e lá ficou embaixo do chuveiro até ouvir o grito “vai secar a caixa?”. Maurício nem se enxugou, a toalha parecia cheia de espinhos, saiu cabisbaixo e foi pro quarto onde havia um espelho grande sobre a penteadeira. Foi aí que ele se deu conta do desastre.


O sol inclemente o havia transformado num tomate maduro. E fervente. Teria que enfrentar sua mãe com um pedido de socorro, não agüentava a queimação. Lágrimas de dor desceram naquele rosto vermelho. Dona Alzira entrou no quarto já com cara de piedade, sabia que aquilo ainda ia doer bastante. O remédio? Goma.


No Nordeste, goma é a fécula de mandioca usada pra fazer tapioca. Diluída em água e espalhada pelo corpo atenua bastante o calor e, em casa de pobre, era o que havia. Quando dona Alzira terminou de passar goma nos lugares queimados, Mauricio parecia ter dado um mergulho num poço de cal – estava branco dos pés à cabeça. Assim Maurício passou a noite. De bruços, acordado, inteiramente queimado e maldizendo a praia. O único conforto era lembrar dos doces beijos de Gracinha.


Amanheceu o dia como anoiteceu. Cada movimento era como uma encostada num pé de xique-xique. Levantar-se pra comer foi um suplício jamais imaginado. Banho frio, mais goma, mais descanso, nada de escola, banho frio, mais goma e aos poucos foi recuperando-se, embora o mínimo toque fosse insuportável. A essa altura, Maurício já cogitava a volta à escola. Olhou no espelho, viu aquela vermelhidão e pensou “vou não, não agüento, e com essa cara Gracinha vai me dar um fora”.


Um dia repetiu o outro e na quarta-feira ele decidiu voltar pra escola. Maurício ajeitou-se na sua camisa mais leve, não aguentou calçar o velho par de kichutes e foi pra aula de chinelos, com os pés em brasa. Como na época, telefone era um bem fixo restrito aos ricos, ele não havia se comunicado com quase ninguém. Seu primo Nonato é quem fez o favor de levar aos professores o recado de que ele estava doente.


Faltando minutos para as duas horas da tarde, Maurício chega na escola estadual e dá de cara com um colega que vem em sua direção com a mão levantada. Ele encolheu-se todo e gritou “não encosta! Tô todo ardido.” O outro riu e se afastou. Foi o tempo de Gracinha vir correndo, dar-lhe um abraço forte e dizer-lhe ao ouvido “eu estava morrendo de saudades”. Com os olhos marejados, ele buscou no fundo do coração um sussurro e respondeu “eeeu também”.






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