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Foto do escritorvalbcampelo

Conto - Onde estão as crianças?

Atualizado: 19 de dez. de 2020


Era um garoto magro e sorridente, atencioso, que detestava brigas. Quinto de uma família de sete filhos, único filho homem entre tantas mulheres. O pai era servidor público estadual, a mãe era dona de casa e seu mundo era aquele bairro e sua escola em uma pequena cidade nordestina. Tinha o nome do pai, Seu Francisco, acrescido do sobrenome “Segundo”, naquele tempo não existia o americanismo “Júnior” tão utilizado nos dias de hoje. Nos anos sessenta, era comum ouvirmos “Segundos” e “Terceiros” nas chamadas dos alunos na entrada de sala de aula.


A sua casa era típica das periferias da época. Sem muros, porque não havia ladrões nem invasões, sem garagem porque carros era privilégios de uns poucos abastados lá do centro da cidade e a rua, uma pequena travessa, era de barro porque nela quase ninguém transitava. Os dois únicos veículos por ali pertenciam a dois caminhoneiros que umas poucas vezes no mês encostavam alguns dias entre uma viagem e outra. A vida passava lentamente, enquanto Segundo e os garotos vizinhos gastavam o tempo entre a escola e as brincadeiras infantis, que na época envolviam mais correria, pulos, socos e empurrões do que os atuais campeonatos de atletismo.


Para Segundo, porém, havia algo mais. Do quarto onde se deitava depois do almoço, em uma rede que balançava ao pé da janela que dava diretamente pra rua, ele contemplava as nuvens. Suas formas e movimentos o apaixonavam. Animais, igrejas, torres, rostos, qualquer coisa poderia surgir sob seu olhar atento e sua imaginação livre. Diariamente ele usufruía daquele enlevo mental, fazendo ouvidos moucos aos chamados de dona Beata, sua mãe. Para ele, aos oito anos, as nuvens eram como os jogos de futebol, não dava pra largar no meio da partida por um simples chamado materno. A tarefa de casa poderia esperar mais um pouco, havia um dragão surgindo no céu.


O tempo passou e, mesmo adulto, de vez em quando, Segundo se deitava pra ver as nuvens. Melhor durante a tarde, na praia, ou no sertão, ali o céu está completo, limpo, inteiramente disponível à fantasia e ao olhar atento. Agora dava pra reconhecer mais elementos - sabe-se hoje que ao longo do tempo o nosso cérebro arquiva as imagens e informações obtidas, portanto, o adulto tem mais a ver nas nuvens do que uma criança. O homem Segundo via mulheres nas nuvens.


Certo dia, saindo da loja aonde trabalhava como balconista no centro da cidade, Segundo morreu tragicamente em um acidente. Ele tinha trinta anos, era casado e pai de um garoto de quatro anos que tem seu nome. Terceiro cresceu em um apartamento, onde não há redes e o jogo eletrônico à mão jamais permitiu que ouvisse o chamado das nuvens para o espetáculo no céu.


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