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  • Foto do escritorvalbcampelo

A morte não é o que dizem os pessimistas. Ou, como morrem os sábios.

Percebo, assim como os leitores, creio, uma temática que, levando em conta as milhares de mortes causadas pelo vírus chinês ou por ele associado a comorbidades, está cada vez mais presente em nosso dia a dia, seja diretamente pela perda de parentes e amigos, seja pelo noticiário macabro que nos impõe a mídia. Mais ainda se considerarmos o salto percebido por especialistas no número de pacientes vítimas de transtornos depressivos, muitos deles devidos a perdas e ao medo. A morte nos ronda e nunca se pensou, falou e lamentou tanto a sua iminência. É dela que trato.


A propósito, recebi do Dr. Neuzemar Gomes de Moraes, um áudio no qual ele, acometido de um câncer devastador – o mesmo tipo que levou a óbito o prefeito paulista Bruno Covas, faz uma emocionante e rara despedida da vida. Submetido a uma intensa quimioterapia, meu amigo e parente não percebe avanços no tratamento a que está submetido. Seu corpo, extremamente debilitado, suporta dores terríveis. Ainda assim, serenamente, reflete e enfrenta de peito aberto o que há de vir. Abaixo, transcrevo e resumo em um trecho a sua fala impactante, e o faço como homenagem in vitam. Diz ele:


“Agradeço por ter vindo a este planeta e aqui ter passado três quartos de século, agradeço a Deus por ter vindo entre um milênio e outro, agradeço a Deus as belezas deste mundo, levarei muita saudade do sol, da lua, dos mares, dos igarapés e dos riachos, das cachoeiras serpenteando, levarei muitas saudades dos fenômenos da natureza, das florestas, das flores, das árvores, do perfume das rosas, do perfume da açucena, de toda minha família, de todos os meus amigos e parentes. Partirei com muita disposição, com muita coragem, sem nenhuma tristeza. Se Deus me desse a oportunidade de tudo recomeçar, eu repetiria tudo novamente, e gostaria de nascer no centro de Iracema ou numa ruazinha do Ema (lugares em que viveu seus primeiros anos) para percorrer tudo da mesma forma”.

O Dr. Neuzemar consegue fazer da morte uma homenagem à vida e à própria história. Somente um estágio elevado da consciência pode permitir a um homem de 75 anos, advogado renomado, culto, viajado, escritor, estudioso das coisas da retórica e da oratória, profundo conhecedor das relações históricas entre Brasil e Portugal, economicamente resolvido, prestigiado e condecorado entre os pares, admirado por seus conterrâneos, que em tese teria ainda muito da vida a viver, se preparar para ser encoberto pelo véu da eternidade sem susto, sem revolta, sem assombro.


A sabedoria e a serenidade do Dr. Neuzemar ao enxergar a aproximação da morte não são compulsórias aos que envelhecem, nem lhes são exclusivas. Há jovens com igual postura e velhos renitentes, teimosos, que sofrem terrivelmente perante a perspectiva de abandonar a vida. Muitas vezes, por excessivo apego às coisas materiais, outras por não haver compreendido a transitoriedade e o verdadeiro sentido da vida.


Algumas lições importantes nos dá em um minuto o Dr. Neuzemar. A primeira, é de profunda crença em Deus, uma certeza inabalável de que por Sua obra veio ao mundo terreno e que a Ele deve a graça de ter vivido.

A segunda, é seu imenso amor à natureza. Não falou ele das coisas maravilhosas feitas pelo homem, das cidades, museus, paisagens e monumentos que conheceu, da arte que admirava, da tecnologia, dos sistemas, do engenho humano. Ele elevou ao máximo as coisas de Deus relativas à natureza em sua essência e simplicidade, em sua beleza infinita, em sua importância fundamental.


Em terceiro, o Dr. Neuzemar lembra as pessoas com as quais conviveu e das quais guarda boas lembranças e amizade. Para ele, família e amigos são, na véspera da partida, não uma amarra que o aprisione à vida, mas boas companhias na trajetória que Deus lhe deu e às quais agradece.


Em quarto, ele dispensa a tristeza e autocomiseração, como se estufasse o peito, se enchesse de coragem e dissesse que está pronto. Tendo ele mesmo refutado o tratamento doloroso, infrutífero e desgastante que vinha mantendo, encoraja os amigos a verem a morte sem temor, como se quisesse provar que a coragem está em aceitá-la. Penso nesse momento se não é a angustiante luta pela vida (já a experimentei mais de uma vez), um evidente medo da morte.


Em quinto, o Dr. Neuzemar homenageia o humilde lugar que o viu crescer, o seu cantinho mais íntimo e inesquecível, o nordeste profundo, uma terra esturricada sujeita à seca inclemente e prenhe da força de homens justos. Lá ele viveu amparado tão somente por Deus, a família e os amigos. Alfabetizado já adolescente, e havendo percorrido longos e espinhosos caminhos até alcançar grandes objetivos, elege a repetição da jornada se ela fosse possível.


Em sentido contrário ao grande filósofo Artur Schopenhauer, que disse em relação à vida que “seus custos não compensam”, Dr. Neuzemar enobrece cada dia vivido e dá-se por privilegiado em ter tido a experiência terrena, uma graça divina. Somente almas muito elevadas e crentes podem chegar com tal consciência a esse ponto da uma vida abreviada pela moléstia fatal. E o faz de forma simples, desapegada, amorosa, sem rancores, apenas convicto de que cumpriu bem o próprio itinerário, fazendo lembrar Ghandi “não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.”.


Longe de ter a serenidade e a sabedoria do Dr. Neuzemar e, fugindo do pessimismo de Schopenhauer, lembro aos que tiveram vidas próximas ceifadas de súbito pela peste chinesa que, ao cabo, não se diferencia em muito do câncer do meu admirável amigo, o que diz a Bíblia em Eclesiastes 7:1; “O bom nome é melhor do que um perfume finíssimo e o dia da morte é melhor que o dia do nascimento”.


Tenhamos, pois, muito cuidado e proteção aos nossos doentes, compreendamos as suas angustias, acudamos os ansiosos e deprimidos que ultimamente brotam entre nós em qualquer idade, mercê do pavor que nos volteia e das perdas efetivas, transmitindo-lhes tanto quanto possamos, a certeza impregnada na fala do Dr. Neuzemar, de que não é o fim, mas uma transição. Os que foram estão em Casa. Deixemos de lado os pessimistas e lembremos do belo poema do teólogo cristão do século XIX, Henry Scott Holland;


"A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do Caminho. Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, eu continuarei sendo...”.

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